35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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Vista de obra de Xica Manicongo durante a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Xica Manicongo

Esse documento deveria nos possibilitar imaginar um rosto, entretanto, diante dele nos deparamos apenas com um túmulo. é a História quem jaz no túmulo. o arquivo da história da escravidão transatlântica é a marca de um desaparecimento. esses documentos não passam, portanto, de cinzas. porque se escolheu preservar o relato de um colono europeu, y não a vida de uma estrela preta? a resposta a essa pergunta é irrelevante. o estrago já foi feito. chegamos tarde demais.

O que importa, no entanto, é que, passados mais de quatrocentos anos, nem sabemos o nome desse tal de… mas lembramos com muito carinho o nome de Xica Manicongo. esse nome que é também uma fábula. Manicongo é uma forma distorcida de dizer Mwene Kongo, senhor do Congo; já Xica foi uma forma que dissidentes de gênero, sobretudo pretas, utilizaram para resgatá-la de uma nomeação violenta cujo mundo da escravidão lhe havia endereçado: Francisco. assim, Xica Manicongo é uma forma de fabular a assinatura sônica dessa criatura cuja beleza insondável jamais iremos ouvir.

Xica foi trazida forçadamente para Salvador em fins de século 16. segundo relatos, um tal de… , um… , teria se incomodado com a performatividade de gênero y sexualidade radicalmente livres de Xica, denunciando- a para a Santa Inquisição. Xica defendeu sua recusa, escolheu permanecer livre. por fim, para evitar a morte, decidiu recuar, enganar os usurpadores usando suas fantasias de homem. teria sido esse o primeiro registro de Drag King da história do território invadido chamado Brasil?

O que podemos imaginar diante dessas letras tortas dispostas nesse papel mofado? uma memória. a memória de que mesmo o esquecimento nunca é absoluto. a memória da imprevisibilidade, na qual aquilo que deveria ter sido aniquilado ressurge de outra maneira num outro lugar: Sertransneja, Coletiva Xica Manicongo, Jaqueline Gomes de Jesus, Bixarte, Xica a peça, Xica Manicongo… a memória da risada aberta, do gingado sereno, da força bruta y da coragem indomável, dessa que hoje chamamos de Xica Manicongo.

As cinzas são usadas há muito em África y Abya Yala como um componente de fertilização dos solos. aí, então, somos convocadas a imaginar, diante desse túmulo, novos frutos selvagens da diáspora de África no Brasil que rebentam y rebolam uma outra forma de escrever para atravessar o Tem/po.

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Xica Manicongo (c. 1600, Congo – Salvador, BA, Brasil, c. 1600) é considerada a primeira travesti do Brasil. Foi escravizada e trabalhou como sapateira na capital baiana. Recusava-se a usar roupas consideradas masculinas e a se comportar como se esperava de um homem e por isso foi acusada de sodomia e de fazer parte de uma quadrilha de feiticeiros sodomitas. Julgada pelo Tribunal do Santo Ofício e condenada à pena de ser queimada viva em praça pública e ter seus descendentes desonrados até a terceira geração, Manicongo abriu mão de sua identidade feminina.